Miguel Torga escreveu uma vez: “quem percorre o Alentejo tem de meditar. E ir explicando aos olhos a significação profunda do que se vê”. Já aqui falámos da serenidade que se sente nestas terras além Tejo, da tranquilidade que a natureza nos transmite e a quietude que sentimos das suas gentes. De facto, o Alentejo torna-nos seres propícios à criação. O ambiente que aqui se sente transporta-nos para um estado em que podemos sentir tudo e não sentir nada. Talvez uma verdadeira paz de espírito!
A terra alentejana, ao contrário das outras regiões portuguesas, está intacta. Está colada a um passado longínquo que se une a um futuro sem intenções de ser diferente. Claro que há herdades a perder de vista com os seus milhares de hectares de oliveiras – todas elas bonitas e iguais às suas vizinhas -, de girassóis e de vinhas. Porém, nem todo o terreno foi domado. Há aqueles outros tantos hectares e hectares de terras abandonadas cujos esqueletos de quintas, outrora imponentes, permanecem ao abandono somente para tornar a paisagem ainda mais inóspita.
Estas terras abandonadas não chegaram a conhecer o alcatrão, e provavelmente a localização foi um impedimento para tornar estes terrenos férteis, ao invés de as deixar para o pastoreio. No Alentejo vemos terra plantada, mas, principalmente, vemos terra virgem. Tal como a poderíamos encontrar há 700 anos. E se o tempo não a mudou, dificilmente o homem o fará.
Observámos de perto estas terras e nota-se bem quando a terra foi tocada pela mão moderna do homem. As oliveiras da natureza crescem todas diferentes, todas para o lado que mais lhe convém; ora uma dança para a esquerda, ora a outra dança para a direita; outras parece que vão cair, mas as suas raízes seguram-nas à terra árida. Todas tem a sua personalidade cuja copa pode ser frondosa, de uma sombra enorme, ou despida pelo vento. E depois há a oliveira da terra do homem, que é igual a todas as outras dentro daquela plantação. Todas a crescer a direito e em linha, com as copas todas iguais e cuja personalidade se mistura com as demais. Ver uma que se distinga da outra não é tarefa menos fácil que procurar uma agulha no palheiro.
E é neste pequeno exemplo de “beleza”, entre a oliveira do homem e a oliveira da natureza, que ficamos a pensar no conceito do belo. E esta meditação que se dá dentro de nós pode até evoluir para outra profunda conversa dentro da nossa mente e tudo graças a esta terra de meditação que é o Alentejo, num Portugal profundo.
No post anterior tínhamos ficado em Monsaraz, a bela e tranquila vila entre muralhas com aquela soberba vista sobre o Alqueva. Daqui seguimos em direcção a Elvas, mas não antes de ir até Juromenha, onde nos iremos despedir deste enorme companheiro de viagem que foi o Guadiana.
Esta pequena vila situada dentro de uma fortaleza foi mais uma vila estratégica nos tempos de fazer a arte da guerra. Aqui regalamos os olhos com a vista sobre o Guadiana e o território espanhol. A sua ocupação remonta aos celtas e romanos, para mais tarde passar para as mãos de muçulmanos e portugueses que disputaram este território até permanecer português em definitivo até aos dias de hoje.
O encanto duma vila militar, hoje pacata, não nos deixa indiferentes. Foi aqui que descobrimos um amável e acolhedor restaurante, que para nosso espanto, o descobrimos por acaso; sim, a internet ainda não mostra tudo. Sopa de tomate, sopa de peixe, a melhor azeitona que já comemos, queijo fresco e cerveja a condizer, foi o inesperado dentro daquilo que podemos esperar de um Alentejo para bons comedores.
15 quilómetros separam esta pequena vila fortificada, da cidade mais fortificada da Europa e com o maior sistema de defesa com baluartes do mundo, Elvas, a “chave do reino”. O encanto do Aqueduto, a imponente muralha triplamente fortificada, ao longo da sua história, o seu património religioso, perfazendo 40 igrejas e ermidas, os museus, os monumentos megalíticos e arqueológicos, de antas e necrópoles a vestígios muçulmanos e vilas romanas, Elvas é uma cidade cheia. Cheia de histórias, culturas, mitos e lendas. A Praça da República onde os turistas se encontram no Posto de Turismo ou na Torre do Relógio; o Forte da Nossa Senhora da Graça, localizado no monte com o mesmo nome, que é um dos fortes mais altos da região; o Aqueduto da Amoreira com 8 quilómetros de extensão, com 1367 galerias subterrâneas e 843 arcos, torna-o no maior aqueduto da Península Ibérica. Estes são só alguns exemplos de locais a explorar, o perfeito antónimo de tempo perdido, que é algo que aqui não se faz.
Enumerar lugares a visitar em Elvas é algo que não cabe num texto sobre o Guadiana, pois só Elvas é digno de um único texto e nós temos uma viagem para seguir caminho. Apesar do rio Guadiana ter ficado para trás, nós continuamos até à imponente Marvão, no Parque Natural da Serra de São Mamede. E o facto de querermos seguir para além do Guadiana deve-se somente a Marvão e a este parque natural ainda com vestígios de um Alentejo profundo, mas já com grandes diferenças paisagísticas para a típica alentejana.
Na base da Serra do Sapoio já conseguimos ter uma ideia do que poderá ser a vista de lá de cima, onde está situada a vila, no entanto só mesmo no topo percebemos a imensidão da terra; tal como disse Saramago: “De Marvão vê-se a terra toda…”. É verdade. Desde toda a sua história e povos que aqui passaram e ficaram, todos eles tinham, dos 800 metros de altura da Serra do Sapoio, vista para toda a terra. Mais um ponto estratégico e motivo de disputa sobre quem tinha direito a ter a vista sobre a terra.
Marvão é a imponência estratégica e militar graças à altura desta Serra do Sapoio. É o poderio militar e geográfico fundido com os ares alentejanos que lhe dão o encanto que temos vindo a experimentar desde o início desta expedição. Aqui a terminaremos, mas não sem um almoço típico alentejano para nos despedirmos desta terra que nos faz meditar. Ao longo de todo o percurso, a todos os castelos, fortes, vilas fortificadas, praias fluviais, quintas e herdades cultivadas a descampados de oliveiras e terras abandonadas, à serenidade do Alentejo junta-se a solenidade. São centenas de anos de história misturada com uma terra com personalidade e que não se sujeita, pelo menos toda ela, à mão do homem.
Diz-se que é o Alentejo que faz o alentejano, e não o contrário. O certo é que em 4 dias de viagem por estas terras sente-se uma mudança. Uma mudança em nós. Se está no ar, na água, no vento, no cheiro da azeitona, não sabemos. Sabemos e sentimos que estamos a ficar alentejanos.
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Expedição Disponível: Rota do Rio Guadiana! 28 de Novembro a 1 de Dezembro e 5 a 8 de Dezembro
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